Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em Tchetchelnik, no seio de uma família de origem judaica que se viu obrigada a emigrar devido à perseguição a judeus. Foi para o Brasil com dois meses de idade e dizia não ter nenhuma ligação com a Ucrânia – “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo” – e que sua verdadeira pátria era o Brasil. A sua infância foi marcada por dificuldades financeiras e pela perda da mãe aos 8 anos. Em 1943, casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente de quem teve dois filhos. Licenciou-se em Direito, mas desde cedo demonstrou mais interesse pelo meio literário, no qual ingressou precocemente como tradutora, vindo a consagrar-se como escritora, jornalista, contista e ensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes da Literatura brasileira do século XX, tendo recebido vários prémios literários ao longo da sua vida.
No centenário do seu nascimento, a edição do Jornal de Letras, número 1309 – 12 a 15 de dezembro 2020 – presta homenagem à “escritora iluminada por dentro”, com um ensaio de Carlos Mendes de Sousa e textos de Isabel Rio Novo, Lídia Jorge, Nélida Piñon e Teolinda Gersão.
Excerto do texto de Nélida Piñon, cuja leitura na íntegra se aconselha:
Carta à Clarice
Sei que devo saciar sua curiosidade. E contar-lhe que seus admiradores, querendo dar-nos a ilusão de ainda se encontrar entre nós, inauguraram uma estátua sua, de corpo inteiro, na calçada da avenida Atlântica, cerca de sua casa. Dizem que alguns a visitam na expectativa de ouvi-la.
Mas não posso poupá-la das desditas nossas. A mais recente refere-se a uma epidemia que se alastra pelo planeta a ameaçar a sobrevivência da espécie. É tal seu efeito letal que nem a ciência, os poderes públicos nos socorrem. E menos ainda a tecnologia que vinha pregando sermos imortais. Ah que ledo engano. […]
Estou ao abrigo do lar. Daqui faço considerações que alarguem seus horizontes, simples porções da realidade atual, da civilização brasileira. Confesso-lhe que o Brasil mudou desde que nos deixou em 1977 e tanto que mal vislumbro seus escaninhos, a matéria que nos constitui. […]. Talvez me exceda, perco a dimensão do que é cívico, moral, institucional. Mas vítima que sou do curso da história, sucumbo ante a crescente intolerância, a radicalidade ideológica, a corrupção desenfreada, a escassa civilidade. O que dizer da violência urbana e doméstica, da crença de ser mais fácil odiar que amar.
Como filhas de imigrantes defendemos a justiça social em vários momentos públicos. Acreditávamos que a educação e a cultura podiam arrancar os brasileiros do degredo da ignorância ao lhe facultar o sentimento libertário. Pois urge preencher as lacunas oriundas das desigualdades sociais e restaurar a dignidade humana. Neste capítulo, aliás, os escritores seguem resistindo, como você o fez.[…]
Nélida Piñon, in Jornal de Letras de 2 a 15 de dezembro de 2020
Felicidade clandestina é uma coletânea de 25 contos alguns dos quais já haviam sido publicados anteriormente. Os contos abordam assuntos como infância, adolescência, família, amizade, sem deixar de abordar as angústias da alma.
A obra é recomendada pelo Plano Nacional de Leitura e integra o “Projeto de Leitura” do ensino secundário.