Leituras com Arte no Centro Qualifica


“Leituras com Arte” foi o caminho escolhido no presente ano letivo no Centro Qualifica para despertar o gosto pela leitura, a sua capacidade mágica de nos fazer viajar de expandir o nosso mundo interno. Com atividades diversificadas, proporcionámos  aos candidatos do processo de RVCC e formandos do Curso EFA do nosso Agrupamento a aventura do encontro com os livros, suas personagens e autores.

Cristina Costa – Coordenadora do Centro Qualifica

 

” O largo” – Ler e recordar


Assinalando as festas do Bodo, partilhamos registo das memórias de um candidato do processo RVCC de nível secundário.

Numa sessão de Cultura, Língua e Comunicação, analisámos em detalhe o conto “O largo”, de Manuel da Fonseca. Cheio de simbolismo e riqueza, fez-me recordar esses tempos idos, mais saudáveis, mais simples, mais autênticos da minha infância numa aldeia bem perto da cidade.

Desde sempre, observei com atenção as suas raízes históricas, esse acervo de património do qual nos devemos orgulhar. Um Conde que um dia foi elevado a Marquês é sempre um nome que vem à mente por qualquer português quando se fala de Pombal. Muitos edifícios estão inseparavelmente ligados a este personagem. Todo o espólio tem sido bem cuidado e está disponível para quem quiser observar e aprender da história em especial no museu que leva o seu nome.

Assim, como no conto “O Largo”, hoje, o dia a dia das pessoas é incomensuravelmente diferente do que era no tempo dos meus pais, avós ou bisavós, com quem ainda privei até à idade dos dez anos. O centro da vila era o local também mais central, por graça também denominado Largo do Cardal. Durante a semana era em frente aos Paços do Concelho que havia a estação das “camionetas da carreira”, hoje denominamos os autocarros de passageiros, que “desaguava” toda a gente que vinha por esse meio até à cidade. Gente que trazia o seu melhor fato, muitas vezes com aspeto muito humilde, mas cuidavam da aparência sempre que se deslocavam à vila. Mesmo assim era notório pela forma de vestir, quem era do meio rural e quem era residente.

No conto, o comboio invadiu e “dinamitou” o Largo. Na vila de Pombal, o comboio sempre a atravessou, tendo também uma estação. Mas foi curioso, quando retiraram as cancelas no local onde a linha se cruzava com a antiga estrada de Leiria, um dos bairros típicos foi cortado, ficando durante muito tempo isolado do “lado de cá”. Mais segurança trouxe mais isolamento. Com o tempo, e depois da praça das galinhas ter dado espaço à feira semanal, este local veio a ganhar de novo vida.

Esta dita feira, ainda hoje é realizada em dois dias da semana, segunda e quinta-feira. Além de ser um espaço de vendas e negócio, muitas pessoas mantêm a velha tradição de guardar alguma coisa para comprar na feira. Se pensarmos nos artigos e itens que lá encontramos, facilmente os encontraríamos noutros espaços “quiçá” bem perto e em abundância. Era um tipo de negócio dispensável para os tempos que correm. Se pensarmos também no desconforto em dias de mau tempo, muitas vezes nem justifica “montar a barraca”. Mas mesmo assim, dada a importância de não deixar morrer a nossa identidade cultural, devemos todos manter o bom hábito de passar na feira e comprar qualquer coisa.. Tanto no passado como hoje continua a ser também um espaço de convívio. Dar dois dedos de conversa, revendo aquele vendedor, ou aquele fiel cliente com décadas de presença frequente é algo a preservar.

Uma das memórias que guardo bem vivas era de ir com o meu avô à vila à segunda-feira, dia de mercado. Como ele era sapateiro, muitas das entregas levava engenhosamente presas na parte de trás da bicicleta. Colocava-se num local estratégico perto da praça, e os clientes procuravam-no, ou para levar ou para entregar para arranjar durante a semana. Oito dias depois, iam ao mesmo local recolher. Lembro a conversa típica de velhos conhecidos, com sonoras palmadas nas costas e tratando-se uns aos outros com linguagem pouco polida. Mas riam-se, divertiam-se e percebia-se que eram felizes e sinceros. Enquanto isso, a minha avó dava as necessárias voltas com as comadres, para levar o avio para a semana, parando muitas vezes para conversar com familiares ou conhecidos de outras aldeias e que pelo mesmo motivo também andavam por ali. Perto das 13:00 horas encontravam-se para almoçarem juntos. O meu avô, já com uma dose considerável de copos bebidos, tantos quantos clientes apareceram naquele dia, mais uns quantos com uns esporádicos conhecidos. Na rua de Ansião, no local onde hoje é o restaurante “O Tirol”, havia uma tasca que servia refeições. À segunda-feira era ali, religiosamente. Havia um enorme braseiro para especialmente no verão, assar sardinha. Cada um assava as suas. Depois, com aquele molho a escorrer, aquela sardinha gorda a escaldar, era colocado num naco de broa. Lembro-me das gargalhadas e da satisfação com que eles comiam. O tinto sempre a “empurrar”. Muitos comiam de pé. As mesas eram insuficientes para aquela aglomeração de gente. Pelas 15:00, 16:00 horas, as mulheres regressavam com a cesta das compras à cabeça. Eram mais ligeiras no caminho de regresso. Eles já bastante “tocados”, vinham lentamente com passos pouco firmes encostados à bicicleta. Mas haviam de chegar. O dia estava feito.

Os mais bêbados, como o Ranito do conto, muitas vezes, ficavam numa valeta a recuperar quase em estado de transe, incapazes de regressar a casa. Muitas mulheres eram “obrigadas” a virem procurá-los, e passar por essa vergonha, ou então um amigo ou vizinho que, sensibilizado, fazia o favor. Dessas realidades tristes penso que ninguém tem saudades. Podem perder-se no tempo…

O domingo também era um dia de excecional movimento no Largo do Cardal. Em especial no período da manhã – a vinda à missa. Famílias inteiras da vila e também de muitas aldeias da freguesia, vinham cumprir a sua missão religiosa. Muitos maridos não ligavam tanto, ficando-se pelo espaço envolvente, enquanto a devoção da esposa na sua opinião serviria para espiar “os pecados” deles também. Muitos   hoje, já descobriram se foi boa opção ou não. Estavam muito concentrados no “sermão” da vendedora de pevides e tremoços. E com uma medida na mão, rumavam a uma “tasca” das redondezas porque aquilo “custava a descer”.

Na obra “O Largo”, as faias eram uma barreira e um abrigo natural, além de darem vida e serem protagonistas de tudo quanto se passava ali. Sem elas o largo não era “O Largo”. Fizeram lembrar-me os frondosos plátanos do Largo do Cardal. O novo projeto de requalificação incluiu o abate da maior parte deles. Foi uma tremenda perda. São décadas e décadas que uma árvore daquele porte precisa para se tornar assim. A vida que atrai, pássaros em especial, a sombra refrescante que proporciona, não podem de todo ser substituídas por coberturas de materiais sintéticos. Talvez neste ponto, os decisores tenham seguido o rumo errado.

No conto “ as suas lágrimas (de João Gadunha) molham o tronco carunchoso das faias.” No Largo do Cardal,  as suas lágrimas (dos plátanos abatidos) molharam as pedras da calçada, tornando-as frias e escorregadias, para sempre. Que todos os “plátanos” que sobreviveram possam molhar o chão e quem passa, com lágrimas de alegria, felizes, quais testemunhos silenciosos da vida daqueles que debaixo “das suas asas” vão passando…

João Domingues – candidato do Processo de RVCC – Nível Secundário

 

Dar forma às emoções


O Origami tem etimologia japonesa e significa dobrar (ori) papel (kami). Foi com recurso a esta técnica milenar que os formandos do processo de RVCC de nível básico foram explorando, a distância e presencialmente, alguns conceitos de geometria. O desafio  era procurar materializar os sentimentos despertados pela leitura das obras “O velho que lia romances de amor” de luís Sepúlveda, “A maior flor do mundo” de José Saramago, “Caldo de pedra” de Teófilo Braga através de construções de papel elementares.

Numa transversalidade dos saberes, os candidatos foram orientados pelos formadores das áreas de matemática para a vida e de linguagem e comunicação para verbalizarem emoções despertadas pela leitura e para a sua representação rigorosa bi e tri dimensional através da arte da dobragem do papel.

Cristina Costa – Coordenadora do Centro Qualifica

 

“O carteiro” de Pablo de Neruda e a descoberta da força das palavras


Descobri a obra “O Carteiro de Pablo de Neruda” no processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências.

No exílio, Pablo de Neruda estava ligado  à sua terra natal através das palavras recebia a cada semana dezenas de cartas que “choviam” de todo lado. As eternas apaixonadas pelo charmoso escritor, apesar de estar casado, enviavam mensagens a que ele educadamente correspondia, e elegantemente respondia. Como é natural, dava mais importância a umas do que a outras. Havia uma carta que ele esperava receber com muita expetativa. Da Suécia. Novidades sobre a quem iriam atribuir o prémio Nobel. Naquele ano, a concorrência era forte. No íntimo, Pablo sabia a chance que tinha perante os seus pares.

Quem fazia  “a ponte” entre os correios e a residência, era o carteiro, Mário.  Este respondera a um anúncio de pedido de funcionário por parte do telegrafista. Apesar de ser um trabalho mal remunerado, e de só ter um destinatário, um único, mesmo assim o rapaz aceitou de bom grado. Inconformado com a vida que a tradição da aldeia impunha, a pesca e  pelo pai que achava que aquela por ter sido a vida dele teria de ser a vida do rapaz, decidiu dar a pedrada no charco e contrariar a máxima de que filho de peixe sabe nadar. Rompeu com a tradição desejada e decidiu abrir novos horizontes. Encontrou a “alpondra” perfeita, o poeta. Com o tempo, com astúcia e inteligência, conseguiu “aproximar-se” de Pablo. Este começou por desconsiderá-lo, mas depressa percebeu o gosto que o carteiro tinha pela leitura e pela poesia.  Tinham algo em comum. Foi nesta interação que uma amizade começou a surgir. Mário começou a perceber a força das palavras e a deixar que o seu mestre  influenciasse e moldasse a sua forma de pensar.

A poesia e a leitura abriram-lhe as “portas do mundo”.  Na sua investida para tentar conquistar a bela Beatriz, algumas das frases apaixonadas que lhe dirigiu foram: “o teu sorriso espalha-se pelo teu rosto como uma borboleta”, “ o teu sorriso é como uma rosa”, “uma lança descoberta, é o bater das águas”, “o teu sorriso é uma onda prateada repentina”.

Mário, o carteiro, é um exemplo vivo de que a beleza interior, a riqueza de carácter e a sabedoria acumuladas, não se aprende nas escolas. Os títulos e cursos académicos, bem como novas descobertas científicas são muito importantes nas sociedades modernas. Sem isso, o sistema entrava em colapso. Mas qualquer um de nós, se por alguma razão ficou arredado desse reconhecimento dado pela sociedade, não fica arredado de “beber” da formação e crescimento contínuos que a vida lhe oferece. Mais, pode ser para os outros uma “fonte de água refrescante” sempre disponível para quem “de si quiser beber.

João Domigues – Candidato do processo de RVCC de nível secundário

“O velho que lia romances de Amor” Luís Sepúlveda – Ecos


No processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, tive ocasião de ver o filme “O velho que lia romances de amor”, baseado na obra literária do autor Luís Sepúlveda. De origem chilena, este escritor ficará para sempre ligado a Portugal por causa do motivo da sua morte. Diagnosticado em fevereiro 2020 com covid 19, viria infelizmente a falecer em Gijón, Espanha, depois da sua última aparição em público ter sido na Póvoa de Varzim num encontro literário.

O romance “O velho que lia romances de amor” foi dedicado a um amigo de nome Chico Mendes, herói da defesa da floresta da Amazónia. O velho é o autor principal e um vasto conhecedor do meio. Dotado de uma visão e sabedoria destacáveis, consegue manter manter boas relações com todos, inclusive com os que não gostam dele, sem usar a força, com boa educação e boas maneiras, sem levantar o tom, sem ser arrogante. Faz lembrar um ditado antigo: “A língua suave pode quebrar um osso”. Vive uma relação de forças com o prefeito (representando o Estado), que usa a lei para se impor e proteger com um notório abuso de autoridade. Um dia, um dos gringos, ou estrangeiros que se instalam nesta terra com o objetivo de explorar as suas riquezas naturais, estupidamente ataca os filhotes de uma onça, sendo depois morto por ela. A fúria invade o animal que se vinga em todo ser vivo que encontra com sangue humano a circular dentro das veias. Depois do aparecimento de vários cadáveres, Bolivar decide que é hora de parar aquela carnificina e sair numa expedição para capturar o perigoso animal. Esta não corre bem por causa da constante insistência  do incompetente prefeito em comandar as operações. Plano seguinte, com o qual todos concordam, deixar Bolivar sozinho até encontrar o animal. Corajosamente, enfrenta-o, levando a melhor neste duelo, sem demonstrar no entanto qualquer sentimento de vingança ou ódio. Usa a força e a inteligência necessárias para se sobrepor ao instinto feroz do felino, fazendo-o porém com muita dignidade, respeito e elevação. Até no momento final em que “enterra” o animal, deixa transparecer quão condoído se sente.

À medida que a história se desenrola a força das palavras, o desejo de saber mais a busca por literatura são uma constante no dia a dia do velho. Com notória dificuldade em soletrar as palavras, não desiste. O seu lado romântico e encantador não passam despercebidos, de modo particular junto das mulheres. Foi presenteado de forma especial depois do ato heróico em que arrisca a vida em prol dos outros.

Há uma frase um pouco “gasta”, mas muito assertiva: “Leitura é cultura”. Ler faz-nos pensar, sonhar, emocionar, refletir, acreditar, acumular conhecimentos e passar a olhar o mundo com outros olhos. Também acalma, dando de alguma forma uma paz de espírito que se transmite e silenciosamente dá sinais a quem nos observa e rodeia de que não somos ameaça. Transmite segurança. Chegados aqui, as bases para estabelecer pontes de amizade e confiança mútuas estão lançadas.

Com a leitura alimentamos o espírito. Isso torna-nos indivíduos mais simples, mais acessíveis, mais altruístas e por consequência menos gananciosos. No fundo, desmaterializamos um pouco os nossos desejos, contentando-nos com o básico para viver. Sentimo-nos bem connosco próprios e com toda certeza, se eu estiver de bem com a vida, de bem comigo, estou muito mais disponível para partilhar. Além disso, se tiver o ouvido atento, a palavra e o tom certos no momento certo, atrairei pessoas de toda estirpe. Sentir-me-ei útil e desejado mas sem qualquer tipo de presunção, ou arrogância intelectual. A leitura torna sonhos reais. Parece milagre….

João Domingues – Candidato do processo de RVCC de nível secundário

Revisitar a obra de Orwell “1984” à luz do Referencial de nível secundário de Educação de Adultos


No dia 21 de janeiro 2020, demos início ao nosso projeto:  Leituras com Arte – Ler + Qualifica com a  exibição do filme  1984, baseado no romance de George Orwell (1949). Numa articulação com o Referencial de Competências-chave de nível secundário, pretendeu-se, proporcionar aos adultos em formação no nosso Agrupamento a aventura do encontro com os livros. Partilhamos hoje um dos resultados desta iniciativa que muito nos enche de orgulho. Propomos-lhe o revisitar da obra de Orwell pelos olhos do candidato do processo de RVCC, Jorge Ferreira.

“O romance “1984”, de George Orwell, publicado em 1949, do qual resultou um filme, marcou a minha adolescência a par das obras de Huxley e Kafka. Nele funde-se o regime ficção e a realidade dos totalitarismos europeus da altura.

Na obra, ninguém consegue escapar ao olhar constante do Big Brother, cuja imagem é difundida por toda a parte. Em Portugal, a figura de Salazar, tal como o Big Brother é o Grande Salvador da Pátria, uma espécie de figura epopeica, o único capaz de solucionar os problemas da nação fortemente hierarquizada, impondo desta forma, o culto ao líder.

Os regimes totalitários partilham um elemento comum na sua origem: uma grande crise económica. Nestes cenários caóticos, as figuras autoritárias são eleitas e acumulam todos os poderes, como única solução radical. O populismo ganha força, através de fomentação de ódios a determinadas categorias sociais e de um complexo sistema de propaganda, pensado para controlar a capacidade de questionamento. É anulada a liberdade de expressão, através de mecanismos de censura, a vida pública sofre uma enorme repressão e o acesso à educação fica reservado sobretudo às elites.

Em Portugal, entre 1945 e 1969, a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), foi responsável por uma enorme repressão individual. Na obra de Orwell, podemos compará-la com a Polícia do Pensamento, perseguindo pessoas por denúncias, recorrendo à tortura como meio de obter informações, sendo também responsável por diversos assassinatos.

Tal como na obra de Orwell, em Portugal, a União Nacional, era o partido único, uma vez que a oposição era fortemente perseguida e reprimida. Este partido era também responsável por uma retórica violenta contra supostos “inimigos internos” que contribuem para a degradação moral da nação. Através da censura, tanto na esfera cultural, como no ensino, à semelhança da obra de Orwell, o Ministério encarregava-se de censurar a história, reescrevendo constantemente os factos do passado. Também o Estado Novo atribuía uma enorme importância à propaganda, criando em 26 de outubro de 1933, o SPN – Secretariado da Propaganda Nacional, com o intuito da divulgação do ideário nacionalista a na padronização da cultura e das artes do regime.”

Jorge Ferreira – Candidato do Processo RVCC de nível secundário