Em princípio, quem chega ao Centro Qualifica vem com o propósito de aumentar as qualificações escolares por estas serem a chave de que necessitam para abrir novas e melhores possibilidades profissionais e formativas.
Em princípio, o processo de RVCC é exatamente o significado do monograma por extenso: Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências.
Mas, em princípio, quem trabalha nesta área da Educação de Adultos facilmente compreende que a exceção, aqui, é a regra. E são muitas, as exceções. O J. é apenas mais uma delas. Saiu da escola há tantos anos quantos se comemora, este ano, a Liberdade: 50. E o direito à educação, uma das liberdades e uma das portas que Abril abriu, permitiu-lhe ver uma delas no nosso Centro. Afinal, aqui todas as pessoas e todas as histórias cabem, independentemente do motivo que levou ao término precoce do percurso escolar porque outras responsabilidades erguiam mais alto a voz.
A expressão ‘Em princípio’ foi tão assídua como o J., ora porque os 35 anos como emigrante fizeram com que o Francês se atravessasse no caminho quando agora, retomava hábitos de escrita perdidos no tempo, ora porque as naturais hesitações e inseguranças de quem ficou apenas com a “quarta classe” e nunca teve oportunidade de explorar as funcionalidades do computador se transformavam em pedras no sapato e dores de cabeça. Foi por tudo isso conjugado que, repetidamente, a equipa ouviu ‘em princípio escreve-se assim’, ‘em princípio foi nesse ano’, ‘estou a contar terminar isto, pelo menos em princípio’.
Com todas estas especificidades, o dia 4 de julho foi-lhe emotivo, talvez porque soube ao dia do “exame da quarta classe”, aqui adensado com o desafio de, pela primeira vez, utilizar com confiança um comando para apresentações que lhe facilitou a transição de diapositivos.
Foi assim que o J., um dos exemplos que veio para o Centro Qualifica apenas numa lógica de fugir à rotina e de absorver novos conhecimentos, fechou a porta do 9.º ano para, em princípio, realizar outras formações e, assim, continuar ativo ao longo da sua vida.
Isabel Moio – Técnica de ORVC
Desacelerar para avançar
A vida ensina que nem sempre se deve acelerar para avançar. A candidata que obteve a certificação de nível B3 no dia 19 de julho de 2023 é prova viva disso. Apesar de ter iniciado processo de RVCC em maio de 2022, apenas naquele dia o concluiu porque, nesta janela temporal, deparou-se com dinâmicas de vida pessoais e familiares que exigiram mais da sua presença e da sua dedicação.
Numa fase inicial, chegou a comparecer a sessões de manhã e de tarde ou de tarde e de noite, o que exigiu de si uma mais apurada gestão de tempo quando, na altura, deixava a sua filha mais nova, com apenas dois meses, a chorar ao colo da sogra, um dos seus portos de abrigo. Se em “dois minutos” pensava que “já escrevi tudo”, gradualmente foi ultrapassando as dificuldades que encontrava sobretudo na Matemática e no Inglês e conseguiu cumprir um novo patamar de qualificação.
Durante estes meses, a candidata sentia que devia uma explicação quando não podia comparecer, o que demonstra a seriedade com que assumiu este propósito de vida. A equipa ouviu-a e respeitou os seus tempos, compreendendo também que a sua sessão de júri seria mais uma vitória dentro da vitória que já lhe era o processo.
Requereu uma presença quase sistemática ao seu lado, inclusive para a ajudar a abrandar o ritmo, a pensar e a ponderar – papel também desempenhado pelos sinais de pontuação, que tinha dificuldade em utilizar, tal a impulsividade. E foi assim que reconheceu que para subir degraus mais altos ou até desnivelados é necessário, por vezes, desacelerar na vida para, então, poder avançar com passo mais firme e seguro.
Isabel Moio – Técnica de ORVC
Entre voos e bagagens
De alguma forma, todas as histórias de vida que nos passam pelas mãos e pelos olhos deixam marca. Em cada uma, à sua maneira, há suor, sacrifício, dores e amores. Há histórias que fazem história da (e com a) passagem pelo nosso Centro: umas porque, por necessidade, aceleram para que o aumento de escolaridade lhes rasgue a fita para alcançarem novas metas; outras, porque as vicissitudes da vida as prolongam e empurram na linha do tempo.
Foi esta última situação que aconteceu com a H., que iniciou o seu processo no verão de 2021 (pouco tempo depois de chegar do Brasil, sua terra-mãe), pois atravessou os ares de todas as estações, duas vezes, até aterrar na sessão de júri de certificação. Na bagagem trouxe o que de mais valioso requer um processo de RVCC: uma história de vida cujas aprendizagens e competências a equipa do Centro Qualifica constatou que mereciam ser reconhecidas e certificadas.
Ainda teve a oportunidade de realizar algumas sessões presencialmente, mas a interrupção letiva empurrou para setembro o natural desenrolar do processo. Nessas sessões foi possível verificar como a H. em duas ou três linhas sentia que já tinha escrito tudo e era com surpresa que via que a viagem tinha de ser mais profunda se quisesse que o voo fosse mais alto. O computador também lhe ofereceu diversos desafios. Por isso, quando incentivada a dar continuidade ao processo à distância – dado que emigrou novamente, agora para França, não tendo data prevista para novos voos de regresso – facilmente compreendeu que estaria por sua conta, por não ter quem, fisicamente ao seu lado, a socorresse nas maiores dificuldades.
A H. dá sentido ao ditado popular “a necessidade aguça o engenho” porque soube perder o medo das alturas e da trepidação da viagem. Destemida como sempre a conhecemos, comprou um computador, acedeu ao TEAMS, instalou uma impressora com scanner, comunicou através do WhatsApp, afinou a sua agenda, trocou a cadeira do escritório e mudou o próprio escritório para ter uma ambiente mais ergonómico… e fez-se à viagem à distância de um clique! A equipa está segura de que os ganhos desta viagem não foram unilaterais, pois deste lado também a nossa bagagem fica mais completa e rica quando somos testemunhas do crescimento dos autores cujas histórias nos passam pelas mãos e pelos olhos… e deixam marca.
Isabel Moio – Técnica de ORVC
(Sobre) saltos
“Sobressaltos da vida” foi o título que a candidata que obteve certificação de nível B3 no dia 20 de abril atribuiu ao seu portefólio. Decompor este título em variantes leva-nos a reconhecer diferentes fases pelas quais passou e por que passam muitos candidatos que se entregam a um projeto formativo desta natureza.
Para o cumprir, é necessário sair dos saltos… quando a caminhada é longa, é recomendável que o calçado seja macio e confortável, para amortizar o andar. E que caminhada é profunda do que aquela que nos leva a revisitar a nossa própria vida, descrevendo-a e refletindo sobre ela, sobre quem somos, quem somos e quem gostaríamos de ser?
Para o cumprir, é necessário andar aos saltos… entre os afazeres rotineiros, onde os filhos assumem um papel central, entre os imprevistos e as necessidades. Por vezes, apetece saltar o tempo lá mais para a frente, mas ele não o permite. Ou saltar etapas, mas também não é possível.
Para o cumprir, mesmo perante as maiores dificuldades ou resistências dos candidatos durante o processo, a equipa procura responsabilizá-los e entregá-los a si mesmos, de forma a crescerem sobre si. Aí, não lhes resta alternativa sem ser enfrentar a montanha sem medo dos obstáculos que possam surgir. Que esta seja precisamente uma das mais importantes mensagens que daqui levam: a de que querendo, conseguem, mas para isso é preciso fazer acontecer. E, assim, os saltos qualitativos na vida alcançam-se: para um patamar superior de compromisso e de realização.
Isabel Moio – Técnica de ORVC
Rebentar da folha
Na semana em que a primavera renovou mais um dos seus ciclos, trazendo no dorso o rebentar da folha, as dos portefólios dos dois candidatos que no dia 23 de março concluíram o nível B3 (9.º ano) por via do processo de RVCC, também os desabrocharam.
Se durante as sessões – em que trilharam um caminho tão significativo de valorização de saberes previamente adquiridos como de autodescoberta e autoconfiança – os ganhos foram visíveis aos olhos dos próprios, não menos relevantes foram os momentos que fizeram a sessão de júri de certificação acontecer.
Qualquer fruto, para ser colhido no auge do seu desenvolvimento, passa por uma sequência de etapas que contribuem para que ganhe forma e identidade. Do mesmo modo, para que estes candidatos pudessem saborear, neste dia, o resultado das horas de construção de uma história de vida à qual nunca se haviam dedicado sob a forma escrita, das horas de formação complementar e de uma lente diferente com a qual olharam para si e que os ajudou a reencontrarem-se, foi necessário um processo de meses para crescimento e maturação. No entanto, estamos cientes de que este saber esperar para fazer acontecer trouxe a estes candidatos o rebentar de uma folha.
Isabel Moio – Técnica de ORVC