Pátria é onde está o coração


Um olhar pelo mundo pode deixar-nos maravilhados com tudo aquilo que o ser humano já alcançou, tornando difícil por vezes ver para lá da opulência das sociedades ditas desenvolvidas. Se a evolução tecnológica é incontestável, o lado humano tende a ficar dormente, refém de uma cegueira voluntária, que apenas quer esquecer que há realidades menos favorecidas que a nossa, reconfortados pelo nosso sentimento de pertença à nossa comunidade, à nossa pátria. Se para a maior parte de nós é fácil identificar as nossas raízes, existe quem não tenha esse luxo. Segundo dados das Nações Unidas em 2023 estavam identificadas pelo menos 4,4 milhões de pessoas apátridas[1]. É curioso como em pleno século XXI se possa observar uma situação com esta dimensão, em que se priva um ser humano de uma identidade.

Ainda que com contornos diferentes, foi na busca do reconhecimento da sua pátria que o candidato de processo RVCC de nível básico apresentou a 07 de novembro de 2023 o seu projeto de pedir a nacionalidade portuguesa. Falamos de alguém cuja nacionalidade remete para as praias de Cabo Verde, que nunca visitou e que apenas conhece pelo relato dos pais. Nascido em Espanha, é em Portugal que reside desde um ano de idade. Por muito que no seu sangue flua a garra lusitana e o lamento do fado, quis os caprichos do destino que os documentos ainda não traduzissem aquela que há muito sabe ser a sua pátria.

Foi a vontade de concluir o 9.º ano de escolaridade e aceder a novos percursos profissionais que trouxe o candidato até nós e foi ele o primeiro a reconhecer que leva muito mais consigo do que aquilo que procurava. Dizendo mais “todos devíamos voltar à escola, mesmo aqueles que já completaram a escolaridade”.

[1] https://observador.pt/2023/11/04/nacoes-unidas-alertam-para-a-situacao-de-milhoes-de-apatridas-no-mundo/ (Consultado a 26 de dezembro de 2024)

Mikael Mendes – Técnico de ORVC

Em princípio


Em princípio, quem chega ao Centro Qualifica vem com o propósito de aumentar as qualificações escolares por estas serem a chave de que necessitam para abrir novas e melhores possibilidades profissionais e formativas.

Em princípio, o processo de RVCC é exatamente o significado do monograma por extenso: Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências.

Mas, em princípio, quem trabalha nesta área da Educação de Adultos facilmente compreende que a exceção, aqui, é a regra. E são muitas, as exceções. O J. é apenas mais uma delas. Saiu da escola há tantos anos quantos se comemora, este ano, a Liberdade: 50. E o direito à educação, uma das liberdades e uma das portas que Abril abriu, permitiu-lhe ver uma delas no nosso Centro. Afinal, aqui todas as pessoas e todas as histórias cabem, independentemente do motivo que levou ao término precoce do percurso escolar porque outras responsabilidades erguiam mais alto a voz.

A expressão ‘Em princípio’ foi tão assídua como o J., ora porque os 35 anos como emigrante fizeram com que o Francês se atravessasse no caminho quando agora, retomava hábitos de escrita perdidos no tempo, ora porque as naturais hesitações e inseguranças de quem ficou apenas com a “quarta classe” e nunca teve oportunidade de explorar as funcionalidades do computador se transformavam em pedras no sapato e dores de cabeça. Foi por tudo isso conjugado que, repetidamente, a equipa ouviu ‘em princípio escreve-se assim’, ‘em princípio foi nesse ano’, ‘estou a contar terminar isto, pelo menos em princípio’.

Com todas estas especificidades, o dia 4 de julho foi-lhe emotivo, talvez porque soube ao dia do “exame da quarta classe”, aqui adensado com o desafio de, pela primeira vez, utilizar com confiança um comando para apresentações que lhe facilitou a transição de diapositivos.

Foi assim que o J., um dos exemplos que veio para o Centro Qualifica apenas numa lógica de fugir à rotina e de absorver novos conhecimentos, fechou a porta do 9.º ano para, em princípio, realizar outras formações e, assim, continuar ativo ao longo da sua vida.

Isabel Moio – Técnica de ORVC

Desacelerar para avançar


A vida ensina que nem sempre se deve acelerar para avançar. A candidata que obteve a certificação de nível B3 no dia 19 de julho de 2023 é prova viva disso. Apesar de ter iniciado processo de RVCC em maio de 2022, apenas naquele dia o concluiu porque, nesta janela temporal, deparou-se com dinâmicas de vida pessoais e familiares que exigiram mais da sua presença e da sua dedicação.

Numa fase inicial, chegou a comparecer a sessões de manhã e de tarde ou de tarde e de noite, o que exigiu de si uma mais apurada gestão de tempo quando, na altura, deixava a sua filha mais nova, com apenas dois meses, a chorar ao colo da sogra, um dos seus portos de abrigo. Se em “dois minutos” pensava que “já escrevi tudo”, gradualmente foi ultrapassando as dificuldades que encontrava sobretudo na Matemática e no Inglês e conseguiu cumprir um novo patamar de qualificação.

Durante estes meses, a candidata sentia que devia uma explicação quando não podia comparecer, o que demonstra a seriedade com que assumiu este propósito de vida. A equipa ouviu-a e respeitou os seus tempos, compreendendo também que a sua sessão de júri seria mais uma vitória dentro da vitória que já lhe era o processo.

Requereu uma presença quase sistemática ao seu lado, inclusive para a ajudar a abrandar o ritmo, a pensar e a ponderar – papel também desempenhado pelos sinais de pontuação, que tinha dificuldade em utilizar, tal a impulsividade. E foi assim que reconheceu que para subir degraus mais altos ou até desnivelados é necessário, por vezes, desacelerar na vida para, então, poder avançar com passo mais firme e seguro.

Isabel Moio – Técnica de ORVC

Entre voos e bagagens


De alguma forma, todas as histórias de vida que nos passam pelas mãos e pelos olhos deixam marca. Em cada uma, à sua maneira, há suor, sacrifício, dores e amores. Há histórias que fazem história da (e com a) passagem pelo nosso Centro: umas porque, por necessidade, aceleram para que o aumento de escolaridade lhes rasgue a fita para alcançarem novas metas; outras, porque as vicissitudes da vida as prolongam e empurram na linha do tempo.

Foi esta última situação que aconteceu com a H., que iniciou o seu processo no verão de 2021 (pouco tempo depois de chegar do Brasil, sua terra-mãe), pois atravessou os ares de todas as estações, duas vezes, até aterrar na sessão de júri de certificação. Na bagagem trouxe o que de mais valioso requer um processo de RVCC: uma história de vida cujas aprendizagens e competências a equipa do Centro Qualifica constatou que mereciam ser reconhecidas e certificadas.

Ainda teve a oportunidade de realizar algumas sessões presencialmente, mas a interrupção letiva empurrou para setembro o natural desenrolar do processo. Nessas sessões foi possível verificar como a H. em duas ou três linhas sentia que já tinha escrito tudo e era com surpresa que via que a viagem tinha de ser mais profunda se quisesse que o voo fosse mais alto. O computador também lhe ofereceu diversos desafios. Por isso, quando incentivada a dar continuidade ao processo à distância – dado que emigrou novamente, agora para França, não tendo data prevista para novos voos de regresso – facilmente compreendeu que estaria por sua conta, por não ter quem, fisicamente ao seu lado, a socorresse nas maiores dificuldades.

A H. dá sentido ao ditado popular “a necessidade aguça o engenho” porque soube perder o medo das alturas e da trepidação da viagem. Destemida como sempre a conhecemos, comprou um computador, acedeu ao TEAMS, instalou uma impressora com scanner, comunicou através do WhatsApp, afinou a sua agenda, trocou a cadeira do escritório e mudou o próprio escritório para ter uma ambiente mais ergonómico… e fez-se à viagem à distância de um clique! A equipa está segura de que os ganhos desta viagem não foram unilaterais, pois deste lado também a nossa bagagem fica mais completa e rica quando somos testemunhas do crescimento dos autores cujas histórias nos passam pelas mãos e pelos olhos… e deixam marca.

Isabel Moio – Técnica de ORVC

(Sobre) saltos


“Sobressaltos da vida” foi o título que a candidata que obteve certificação de nível B3 no dia 20 de abril atribuiu ao seu portefólio. Decompor este título em variantes leva-nos a reconhecer diferentes fases pelas quais passou e por que passam muitos candidatos que se entregam a um projeto formativo desta natureza.

Para o cumprir, é necessário sair dos saltos… quando a caminhada é longa, é recomendável que o calçado seja macio e confortável, para amortizar o andar. E que caminhada é profunda do que aquela que nos leva a revisitar a nossa própria vida, descrevendo-a e refletindo sobre ela, sobre quem somos, quem somos e quem gostaríamos de ser?

Para o cumprir, é necessário andar aos saltos… entre os afazeres rotineiros, onde os filhos assumem um papel central, entre os imprevistos e as necessidades. Por vezes, apetece saltar o tempo lá mais para a frente, mas ele não o permite. Ou saltar etapas, mas também não é possível.

Para o cumprir, mesmo perante as maiores dificuldades ou resistências dos candidatos durante o processo, a equipa procura responsabilizá-los e entregá-los a si mesmos, de forma a crescerem sobre si. Aí, não lhes resta alternativa sem ser enfrentar a montanha sem medo dos obstáculos que possam surgir. Que esta seja precisamente uma das mais importantes mensagens que daqui levam: a de que querendo, conseguem, mas para isso é preciso fazer acontecer. E, assim, os saltos qualitativos na vida alcançam-se: para um patamar superior de compromisso e de realização.

Isabel Moio – Técnica de ORVC

 

 

Rebentar da folha


Na semana em que a primavera renovou mais um dos seus ciclos, trazendo no dorso o rebentar da folha, as dos portefólios dos dois candidatos que no dia 23 de março concluíram o nível B3 (9.º ano) por via do processo de RVCC, também os desabrocharam.

Se durante as sessões – em que trilharam um caminho tão significativo de valorização de saberes previamente adquiridos como de autodescoberta e autoconfiança – os ganhos foram visíveis aos olhos dos próprios, não menos relevantes foram os momentos que fizeram a sessão de júri de certificação acontecer.

Qualquer fruto, para ser colhido no auge do seu desenvolvimento, passa por uma sequência de etapas que contribuem para que ganhe forma e identidade. Do mesmo modo, para que estes candidatos pudessem saborear, neste dia, o resultado das horas de construção de uma história de vida à qual nunca se haviam dedicado sob a forma escrita, das horas de formação complementar e de uma lente diferente com a qual olharam para si e que os ajudou a reencontrarem-se, foi necessário um processo de meses para crescimento e maturação. No entanto, estamos cientes de que este saber esperar para fazer acontecer trouxe a estes candidatos o rebentar de uma folha.

Isabel Moio – Técnica de ORVC