O centenário da morte de Guerra Junqueiro (1850-1923) pode ser uma ocasião para sacudir o pó a dois volumes da sua poesia conservados no depósito da nossa biblioteca e para os resgatar do esquecimento: A Velhice do Padre Eterno (1885) e Os Simples (1892).
Um leitor mais devoto ficará, por certo, escandalizado com a peculiar versão do “Génesis” apresentada pelo autor, no primeiro livro referido:
Jeová, por alcunha antiga ― o Padre Eterno
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgaravatar com o dedo no nariz,
Tirou d’esse nariz o que um nariz encerra,
Deitou depois isso cá baixo, e fez a terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da terra, e zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
[…]
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na terra fez o mar.
Não menos provocatória é a forma como desmascara as falsas virtudes da água de Lourdes, descrita como “o Espírito Santo engarrafado em bilhas” ou o “milagre à canada”, bem como a hipocrisia e a devassidão dum certo abade apreciador de uma boa sesta e de vinho:
O abade é beberrão. Casca-lhe muito e bem.
Lá pinga como a dele isso ninguém na tem.
Sabe da poda, é mestre! A adega até dá gosto
Entrar a gente lá n’uma tarde de agosto.
[…] o próprio abade e mais a ama
Tem feito d’essa adega o seu quarto de cama
Várias vezes… O amor pela-se por bom vinho.
Se Vénus foi sua mãe, Baco foi seu padrinho.
Sensata opinião que o nosso abade aprova,
Sobretudo se o vinho é velho e a mulher nova.
A sátira e o evidente anticlericalismo não são, todavia, incompatíveis com o desejo de exumar “a fé desse montão de escombros” e de desentulhar “Deus d’essa aluvião de areia”.
Em Os Simples, Guerra Junqueiro mostra-se próximo dos humildes. Os leitores menos novos lembrar-se-ão, talvez, do poema “A Moleirinha”, cantado por Maria de Lurdes Resende. Nele, uma “velhinha errante”, “encarquilhada e benta”, guia o “jerico russo, d’uma linda cor”, avançando ambos “pela estrada plana, toque, toque, toque”. O jumento é um ser simples cuja ingénua visão do céu parece revelar, todavia, um certo e despretensioso platonismo filosófico:
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d’astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d’oiro
Com a mó de jaspe que anda além no céu!…
Na descrição deste asno meio filósofo, perpassa, uma vez mais, um certo humor, característica do poeta que, um dia, em amena conversa com um abade indignado, devido ao escândalo causado pel’ A Velhice do Padre Eterno, não hesitou em atacar o autor da obra, sem, no entanto, revelar a sua própria identidade.