Misericórdia


Quando vi pela primeira vez o livro, atraiu-me o título: Misericórdia. Incapaz de parar o pensamento – não há machado que lhe corte a raiz – logo meditei que esta palavra, que junta as palavras latinas miseris e cordis, resulta em algo tão belo como “ sentir compaixão no coração”. Parece ser uma palavra que caiu em desuso, embora o que me inquiete não seja a falta de utilização por si só, mas antes a inexistência dos atos a que dá nome. Logo recuei neste triste pensamento quando me assomou à mente a palavra “empatia”.

Cativou-me também a capa e a autora Lídia Jorge, um dos grandes nomes da literatura contemporânea. Estes argumentos, aliados aos inúmeros prémios que o romance tem recebido cá e lá fora, foram decisivos para iniciar a leitura.

Devo dizer-vos que Misericórdia vale mesmo a pena! A ação decorre no Hotel Paraíso, um lar para idosos onde se encontra a inesquecível D. Alberti e muitas outras personagens, umas residentes, outras que são visitas, e ainda aquelas que lá trabalham. Todas transportam em si muitas histórias, e, através delas, aquele local fechado enriquece-se com uma multiplicidade de relações humanas, afetos, desafios, preconceitos, dificuldades, que existem no mundo cá fora. Lá dentro (ainda) há lugar para o amor, por exemplo! Quando chega ao lar o Sargento João Almeida, agarrado ao seu tripé, mas ainda um homem vistoso e másculo, há corações que palpitam! Somos, na verdade, convidados a entrar naquele microcosmos, cujas dinâmicas nos levam a refletir sobre o nosso entendimento da velhice. Tocou-me particularmente o facto de a D. Alberti se deslocar de cadeira de rodas e haver funcionários que a transportavam de um sítio para o outro sem sequer lhe dirigirem uma palavra. Chegada ao destino, ali ficava sem que o seu benfeitor se tivesse sequer identificado. E quando nos momentos bons ela “enchia as algibeiras da alma” para fazer face a futuros momentos de desânimo? E a Lilimunde, que veio do Brasil e que ainda tem uma dívida enorme a pagar a quem a trouxe até ao nosso país? E o magrebino que tinha uma sensibilidade enorme ao cuidar daqueles corpos já doridos e marcados pelo tempo? E a filha da D. Alberti, que escreve livros sobre coisas simples, “faz amor com o mundo”, mas que não vê o reconhecimento da Mãe, para quem um livro deve ser volumoso e sobre coisas importantes.

A cada virar de página, encontramos verdadeiras pérolas de sabedoria, a(s) história(s) convocam-nos para muitas reflexões sobre a nossa própria vida e a forma como nos relacionamos com os outros. Também nos faz sorrir e às vezes até dar uma gargalhada e, garanto-vos, há sempre algo que nos agarra à história. Ao terminar a leitura é que vão sentir que fizeram uma viagem literária memorável.

 

Ah! E existe na nossa biblioteca!